domingo, 14 de fevereiro de 2010

Tola e escrava, enfim

Seus olhos eram diferentemente serenos e doces, opostos àqueles que eu costumava encontrar em minhas manhãs ansiosas. Eu os via ávidos, tensos, energéticos. Tinham um quê de juventude fora de hora, uma vontade súbita e lampejante de me possuir.
Lembro-me que me hipnotizavam e eu me sentia muitas vezes a flutuar; sentia-me como se mergulhasse neles. Eu, às vezes despercebidamente, os retribuia com uma fome igualmente incontrolável. Agarrava-me à cadeira numa infeliz tentativa de controle, enquanto seus olhos me fitavam, espertos, e sua boca abria um sorriso discreto e involuntário.

Hoje os vi novamente, calmos. Anciãos e chorosos, pareciam-me alegres, de uma alegria pacífica. Igualmente hipnotizantes. Lembraram-me, por trás da lente dos seus óculos de grau, daquela paixão perturbadora que me assombrou durante um ano e poucos meses. Eram seus olhos que me perseguiam, sempre com uma expressão que eu ao mesmo tempo desejava e evitava. Não era a fome que eu queria ver; queria, neles, encontrar a paixão incerta e celestial que encontrei hoje. Queria estar por trás das lentes da câmera que captou aquele momento; queria, enfim, poder desfrutar do teu olhar, sereno e passional, direcionado a mim.

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

(saudade)

"Saudade" era a palavra estampada no pára-lamas do caminhão. Melancólica, sentiu-se estranhamente uma máquina por estar tão próxima dos sentimentos de um automóvel: a saudade também a habitava.
"Tão sozinha", ela pensava. "A saudade, no caminhão, está tão sozinha quanto eu". Podia vê-la vagando por entre as rodas enquanto o bicho-máquina, gigante e escuro, estacionava ainda à sua frente e impedia a passagem. Mas ela sentia-se estranhamente confortável, apesar das lágrimas que escorriam involuntariamente de seus olhos. Estava só, mas não vazia. Como já dissera, feliz ou infelizmente, a saudade a preenchia.