sexta-feira, 29 de julho de 2011

A dor e sua agulha

Era uma vez uma dor. Ela morava miúda no meu peito, apertado, e carregava consigo uma minúscula agulha que sempre havia de me espetar o coração. A cada espetada - ai, que dor mesquinha - ela crescia, alimentando-se da tristeza que meu músculo, vermelho e palpitante, levava a bordo.
Bastava te ver - só ver! Que experiência cruel -para que ela, sem misericórdia, se animasse a espetar. E espetava sem dó nem intervalos. Bastava você chegar. E quanto mais o meu coração palpitava, mais ela alfinetava.

Um dia eu, cansada, resolvi falar: há uma dor dentro de mim que não quer sarar. E, curioso - bastou o dizer, bastou que as palavras saíssem da minha boca-,  para a dor pestinha pegar carona e voar, invisível, com o meu desabafo. 

E lá foi ela, não ser para onde... Talvez procurar outro coração, vítima indefesa, para com sua agulha, tão fina e incômoda, deixar o seu amargo traço.

quinta-feira, 28 de julho de 2011

keep me where the light is

(...)

Melhor: a segurança do sempre, da companhia desinteressada, da presença do amor fraterno. Reconfortante. A certeza de um berço seguro, apesar de cambaleante, onde posso repousar minha cabeça no travesseiro, fofo, e me emaranhar nos lençóis macios. Fechar os olhos e saber que você está para mim como eu estou para você. Sempre.
Agora, sim, talvez eu possa dizer “eu amo você”. Verdadeiramente. E fim.

segunda-feira, 25 de julho de 2011

embriagar-me até que alguém me esqueça

Exercite-se. Não coma fast-food, só de vez em quando. Deixe crescer o cabelo, faça escova progressiva; vá ao salão toda semana: pés, mãos e sobrancelha; arrume a casa diariamente; durma cedo, acorde cedo. Case-se com um bom homem, tenha um bom status social, engravide. Tenha dois filhos: um menino e uma menina; crie-os conforme manda a cartilha: menina, amélia; menino, machão. Faça com que eles se exercitem, comam fast-food só às vezes, cuidem devidamente de sua aparência e casem-se no futuro; com que ganhem dinheiro e tenham filhos. E que estes filhos, por sua vez, exercitem-se, não comam fast-food, cuidem-se, casem-se, e tenham filhos...

segunda-feira, 4 de julho de 2011

Herança involuntária


Viu-o, enfardado, segurando uma arma na cintura.
A menina - devo dizer, quase mulher - estava pausada num canto escuro, longe das luzes rarefeitas da cidade. Caminhava a passos curtos e silenciosos. Seus pés, cansados, não distinguiam mais rocha de algodão e suas mãos tampouco sabiam a diferença entre macio e áspero.

Aproximou-se do homem branco, másculo, com olhos de perdão e boca de amargura. Olhou-o nos olhos; pôs sua mão na dele e dirigiu-a aonde repousava a pistola, inquieta. Movendo os lábios como se contasse os segundos, levou-a pesada, preta, robusta e carregada à sua cabeça. Sentiu-a roçando em seus cabelos; fechou os olhos. Encostou, ainda vagarosamente, seus lábios, negros, nos dele, brancos, enquanto, guiando a mão trêmula, branca, pela sua, preta, apertou o gatilho.
Ouviu-se o disparo por todo o bairro. Ensurdecedor, o barulho da pistola revelava uma herança imprevista. Seu último sorriso, eternamente congelado na boca daquele que seria seu assassino involuntário, foi o que restou do sangue - preto - que espirrava numa pele áspera, cruel - branca.