segunda-feira, 4 de julho de 2011

Herança involuntária


Viu-o, enfardado, segurando uma arma na cintura.
A menina - devo dizer, quase mulher - estava pausada num canto escuro, longe das luzes rarefeitas da cidade. Caminhava a passos curtos e silenciosos. Seus pés, cansados, não distinguiam mais rocha de algodão e suas mãos tampouco sabiam a diferença entre macio e áspero.

Aproximou-se do homem branco, másculo, com olhos de perdão e boca de amargura. Olhou-o nos olhos; pôs sua mão na dele e dirigiu-a aonde repousava a pistola, inquieta. Movendo os lábios como se contasse os segundos, levou-a pesada, preta, robusta e carregada à sua cabeça. Sentiu-a roçando em seus cabelos; fechou os olhos. Encostou, ainda vagarosamente, seus lábios, negros, nos dele, brancos, enquanto, guiando a mão trêmula, branca, pela sua, preta, apertou o gatilho.
Ouviu-se o disparo por todo o bairro. Ensurdecedor, o barulho da pistola revelava uma herança imprevista. Seu último sorriso, eternamente congelado na boca daquele que seria seu assassino involuntário, foi o que restou do sangue - preto - que espirrava numa pele áspera, cruel - branca.

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